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Etarismo: preconceito contra pessoas por conta da idade pode gerar negligência

Idosos sofrem discriminação em diversas esferas da vida social, sendo muitas vezes impedidos de desempenhar algumas atividades

Julgar alguém como incapaz em razão de sua idade também é um tipo de conduta que parece alinhada com o capacitismo, que afeta Pessoas com Deficiência (PcD), vistas como potencialmente incapazes, limitadas ou até mesmo são reduzidas à sua deficiência.

 

“Quando chegamos a certa idade, é como se voltássemos a ser crianças de novo”. Esta é uma frase comumente repetida como uma verdade, mas que apenas denuncia como pessoas idosas costumam ser lidas pelos outros – e até mesmo por si próprias – como incapazes e como se precisassem ser tuteladas em todas suas ações e decisões. “É o que eu sinto na pele”, confirma a aposentada Geraldina de Lima, 67.

No fim do ano passado, após um acidente doméstico, ela passou a sofrer e reclamar de dores no braço. Porém, suas queixas não tiveram qualquer peso, e ela foi negligenciada, como se não pudesse sequer responder pelo que ela própria sentia. “Meus familiares apenas disseram para eu ir me deitar, que ia passar”, narra. Sem assistência, Geraldina decidiu ir sozinha à Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) mais próxima de sua casa. Chegando lá, antes que tivesse tempo de explicar o porquê de ter ido ao local, ela foi imediatamente repreendida: “O que a senhora está fazendo aqui sozinha? A senhora já tem idade, não sabe que é perigoso? Poderia ter tido um acidente… Além do mais, só vamos te atender quando estiver com um acompanhante”, disse-lhe um dos funcionários, conforme relata a aposentada.

A sequência de acontecimentos pode causar espanto, mas apenas escancara situações que são cotidianas na vida de pessoas idosas e que são vítimas do etarismo, um tipo de preconceito etário, nesse caso dirigido contra pessoas com mais de 60 anos e que é muito disseminado em toda a sociedade ocidental. “Estamos falando de algo que pode ser percebido tanto de maneira sutil quanto de forma explícita, mas que atravessa as mais diversas dinâmicas sociais e culturais”, assinala a reumatologista Daniela Castelo Azevedo, da clínica Mais 60 Saúde, especializada em atendimento a pacientes na terceira idade. Ela acrescenta que o problema é reforçado por falas preconceituosas, que às vezes são gratuitamente agressivas e, em outras ocasiões, colocadas sob pretexto de cuidado e preocupação.

“O etarismo está presente nas relações interpessoais, no mercado de trabalho e nas políticas públicas – ou melhor, na quase ausência de políticas públicas voltadas para essa parcela da população”, critica Daniela. “Na saúde, uma das principais queixas dos idosos é em relação a serem tratados como se fossem crianças. Algo que também vai se repetir na relação dessas pessoas com seus familiares mais próximos, sobretudo os filhos”, expõe.

O psicólogo Wellington Amaral concorda. “É comum que filhos, filhas e parentes mais próximos, com a autêntica intenção de proteger, tentem impedir o idoso de desempenhar algumas atividades e de ter novas experiências. Eles são privados de exercer um trabalho, de praticar um exercício ou mesmo de ter relações afetivas, de namorar, de se casar… Se tentam fazer algo, acabam ouvindo que não podem por estarem velhos. Mas, na verdade, eles podem, sim, mesmo que dentro de alguns limites”, avalia o profissional da saúde.

A comédia "E se Vivêssemos Todos Juntos?", de 2012, trata, com leveza, temas caros ao debate do etarismo; na produção, cinco amigos idosos decidem passar morar em uma mesma casa, prestando apoio ao mesmo tempo em que respeitam a autonomia uns aos outros

Para ele, na medida em que esse comportamento reforça o estigma contra a velhice, ele é problemático por afetar toda a sociedade, e não apenas por ferir a dignidade daquele que está sendo diretamente impedido de fazer algo. “Se a gente não começar a quebrar essa lógica, como vamos fazer? A expectativa de vida é cada vez mais alta, não dá para ignorar que seremos um país formado por uma população envelhecida em poucos anos”, pontua. O psicólogo ainda alerta que, com a pandemia de Covid-19, o preconceito contra essa parcela da população ficou mais exacerbado. Além disso, desde a emergência de saúde, os desafios cotidianos dessas pessoas se tornaram ainda mais acentuados.

Segurança. Coordenador de um Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em Córrego Danta, município localizado na região Centro-Oeste de Minas e que é a cidade com a maior população idosa vivendo sozinha em todo o Estado, Wellington Amaral pondera que, claro, é importante proteger o idoso, que está mais vulnerável, por exemplo, a sofrer acidentes domésticos. Porém, para ele, essas medidas devem ser menos no sentido de coibir atividades e mais no sentido de criar condições seguras para que elas sejam desenvolvidas. “É crucial que a gente aprenda a respeitar a autonomia deles”, diz.

Tratados como “coisa da idade”, sintomas acabam sendo negligenciados

Voltando à história que abre esta reportagem, o relato de Geraldina de Lima é alegórico de como o etarismo pode reverberar em negligência. “É surpreendentemente comum que se ignorem sinais de doenças quando eles são relatados por idosos, porque tornou-se algo corriqueiro atribuir uma sensação de dor, por exemplo, a algo normal a partir de certa idade”, analisa Daniela Azevedo, lembrando as diversas vezes em que ouviu histórias de pacientes que precisaram ir a vários médicos para que, enfim, aquela reclamação fosse de fato considerada e o sintoma investigado.

Ocorre que, para além da deslegitimação da palavra do sujeito com mais de 60 anos, que pode se ressentir por receber esse tratamento, o atraso de diagnóstico pode repercutir no agravamento de doenças e na piora do estado clínico do paciente.

No caso de Geraldina, após finalmente ser atendida, ela descobriu ter sofrido uma subluxação no ombro. Contudo, naquela altura, a lesão já não era a sua principal queixa. “Eu me senti humilhada, passei muita vergonha, muita vergonha. Chorei demais. Eu pensava que não era possível que aquilo estivesse acontecendo, que minha palavra não valia mais nada, que todo mundo olhava para minha idade antes de olhar para mim”, lamenta.

Com movimentos mais limitados e recomendação de que evitasse algumas tarefas, a aposentada foi se sentir acolhida por uma vizinha, que também é idosa. “Ela me visitou no dia seguinte e, depois, me chamou para passar uns dias na casa dela, até que eu melhorasse. Eu sinto que nós, na velhice, temos mesmo é uns aos outros, porque para o resto a gente é um problema”, critica.

Sexualidade

I'm over 60 and having a great sex life — does that disturb you? | Times2 | The Times

A forma infantil como idosos são tratados por profissionais de saúde é uma barreira a mais para que se fale a esse grupo sobre métodos de proteção a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

“A Organização Mundial de Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre Envelhecimento e Saúde, aponta que recentes evidências a respeito do processo de envelhecimento indicam que muitas percepções e suposições comuns sobre as pessoas mais velhas são baseadas em estereótipos ultrapassados. No contexto da sexualidade, pesquisadores têm indicado que os idosos continuam sendo sexualmente ativos, inclusive após os 80 anos de idade”, aponta o artigo “Vulnerabilidade de idosos a infecções sexualmente transmissíveis”, de 2017”, que sugere a necessidade de “estratégias que favoreçam às mulheres negociarem a prática de sexo seguro e a educação permanente dos profissionais (de saúde) na temática”.

Envelhecer

Medo. Um levantamento de 2018, feito pelo Instituto Qualibest em parceria com a farmacêutica Pfizer, demonstrou o tamanho da aversão dos brasileiros em relação à velhice: de acordo com o estudo, 92% reconhecem ter medo de envelhecer. O receio do desenvolvimento de problemas de saúde e de limitações físicas e psíquicas é o principal mobilizador do sentimento.

Presença. Atualmente, de acordo com pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgada em junho do ano passado, quatro em dez domicílios têm a presença de pelo menos um morador idoso. Em 18% dos lares, o morador já na terceira idade vive sozinho.

Na ativa. A Fiocruz também apontou que mais da metade das pessoas com mais de 60 anos (52,3%) tinha trabalhos remunerados antes da pandemia, um dado que põe a crença de que essa parcela da população não é economicamente ativa e produtiva. Desde a chegada do novo coronavírus ao país, entretanto, 36% deles ficaram sem rendimentos ou tiveram grande diminuição na renda – índice que salta para 55% para os que não possuem vínculo empregatício.

Futuro. Segundo estimativas do Banco Mundial, o Brasil terá 64 milhões de idosos em 2050, o que deve equivaler a quase um terço da população total.

Velhice e pluralidade

A escritora e produtora de conteúdo Cris Guerra já vinha, havia algum tempo, discutindo questões relacionadas ao processo de envelhecimento em suas redes sociais. “Costumo dizer que aconteceu uma coisa muito inesperada na minha vida: eu envelheci. Eu fiz 50 anos, e isso mexeu comigo, então comecei a trazer reflexões sobre isso, mas sem grande destaque”. Tudo mudou quando um vídeo publicado pelo canal Porta dos Fundos deflagrou nela o desejo de colocar em debate o preconceito etário.

Na esquete, o humorista Fábio Porchat interpreta um personagem que se dirige à mãe como se falasse com uma criança. “Toma o celular aqui, vai brincar com ele. Brinca aí com ele, bonitinho, que eu vou trabalhar aqui”, diz. Então, as atrizes Evelyn Castro e Noemia Oliveira o interpelam, questionando se ela estaria sendo supervisionada. “Supervisão pra quê? Uma mulher adulta, de 57 anos”, ele responde, ao que elas reagem: “Exatamente, nessa idade que é muito perigoso largar o celular nas mãos deles. Você não sabe o que ela está acessando, pode estar recebendo fake news de um estranho”.

“Quando fiz o vídeo (criticando os traços de etarismo observados no humorístico), não imaginava que ele iria repercutir assim. E, se viralizou, não acho que foi à toa”, avalia.

“Como alguém que está entrando na velhice, me sinto sendo mais vezes afetada por atitudes e olhares que vêm dos outros e também vêm de mim mesma”, pontua Cris, acrescentando que o primeiro etarismo a ser combatido é aquele internalizado pela própria pessoa. “A gente se habituou a mitificar a idade, pensando nos idosos em termos de generalização, sem compreender toda a diversidade que há na longevidade”, argumenta.

A criadora de conteúdo lembra que a sua geração tem vivido uma transição do analógico para o digital. “Isso é muito positivo porque nos possibilita sermos mais contemporâneos, sendo que o que mais pega para o velho é sentir que está desatualizado, que não está no seu tempo – enquanto temos que entender que o nosso tempo é o hoje, o presente”, observa.

Além disso, Cris vê grande importância em retirar da invisibilidade as pautas da terceira idade, pensando-se em ações afirmativas que possibilitem a positivação da imagem do idoso. A reflexão dela está em consonância com o que indicam estudos sobre o etarismo e seus reflexos na sociedade.

Pesquisa.

Uma meta-análise publicada por ocasião do Congresso Nacional de Envelhecimento Humano, que se deteve sobre 11 artigos e sete revisões literárias, observou ser “fundamental que haja uma modificação das representações sociais frente ao envelhecimento, para que a discriminação sofrida pelos idosos não seja mais uma prática vivenciada de modo automático, tendo por objetivo a criação de cenários de maior solidariedade, em que seja percebido que as maiores limitações para o idoso são impostas pelo meio social em que vive, e não pela sua condição de senescência”.

O texto ainda cita que “as principais maneiras de entender as particularidades desse tipo de preconceito giram em torno do reconhecimento de estereótipos relacionados à velhice, o que influencia a autopercepção do idoso, como também a visão dos outros grupos etários para a população da terceira idade”. Além disso, apontam os autores, o idadismo é percebido como algo frequente, implacável e difundido na comunidade.

“Há, interferindo nesse processo, padrões que rotulam a beleza como sinônimo de juventude, exemplificado no culto ao corpo, cada vez mais intenso como forma de retardar o processo natural de envelhecimento. Somado a esses fatores, há a mudança na estrutura familiar e o consequente afastamento afetivo entre indivíduos mais novos e mais velhos, que torna o convívio intergeracional menos frequente”, constatam os pesquisadores.

Preconceitos comuns.

Cris Guerra costuma comparar o preconceito vivenciado por idosos com aqueles sofridos por pessoas gordas, a gordofobia. O que faz sentido, pois essas duas formas de discriminação derivam de raízes comuns, entre elas a pressão estética, que atinge principalmente mulheres e faz com que elas se sintam constantemente insatisfeitas com seus próprios corpos e inseguras.

Julgar alguém como incapaz em razão de sua idade também é um tipo de conduta que parece alinhada com o capacitismo, que afeta Pessoas com Deficiência (PcD), vistas como potencialmente incapazes, limitadas ou até mesmo são reduzidas à sua deficiência.

Ela também lembra que essas formas de preconceito podem se sobrepor, impondo desafios ainda mais duros às pessoas vítimas. A reportagem de O TEMPO já mostrou, por exemplo, como idosas trans têm rotina de solidão, preconceito e específicas demandas na área da saúde.

fonte O TEMPO